sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O devorador de livros

Jogou o décimo segundo livro na mesinha de cabeceira. Precisava se tratar. Recorreu então ao seu psicólogo.
—Doutor, sabe o que é? Não consigo mais ler um livro inteiro! Sempre paro na metade e começo outro. Isso nunca aconteceu comigo antes.
—Caro Orlando,...
—Mas Doutor, eu sempre fui um devorador de páginas! Isso não podia estar acontecendo!
—Orlando...
—Tenho uma reputação a manter!
—Orlando, tenha calma!
—Tá, estou calmo.
—Tem conseguido ler revistas?
—Só as semanais. As mensais eu abandonei há um semestre atrás. Tá vendo doutor? Acho que já era o começo da crise!
—Meu filho, tenha calma. Vamos resolver isso.
—O senhor, há quanto tempo leu seu último livro?
—...hein?
—O último?! Quando foi o último? Inteiro?! Página por página? Da capa à bibliografia!?
—Não sei, Orlando! Ora que coisa. O psicólogo aqui sou eu.
—Tá vendo? Ah! Tá vendo? Como posso me tratar com alguém que se quer lê algo? Me desculpe Doutor, mas vou embora.
—Mas Orlando... isso que... hein? Orlando?
Achava que o problema não podia ser resolvido no psicólogo e pensou que fosse algo mais óbvio. Seguiu, então, direto para o oculista. Pegou uma senha e aguardou. Uma hora. Duas horas. Estava decidido. Não dormiria até encontrar a raiz do problema. Três horas. Três horas e meia.
—Orlando?
—Sim?
—Sala 5. Doutor Jivago.
Sala 5, entrou.
—Doutor, sabe o que é? Não consigo mais ler um livro inteiro! Isso é um problema grave. Talvez tenha a ver com a vista. Devo estar enxergando mal – o que deve estar me desestimulando a leitura.
— Hum, é... é uma suposição. Vamos ver. Sente-se aqui.
E ajustou uma lente em cada olho de Orlando.
—Que letra é essa?
—E.
—E essa agora?
—T.
— E agora?
—Z.
—Tem tido dores de cabeça?
—Não.
—Enjôos?
—Não.
—É, sua visão está perfeita. Não há nenhum problema.
—Mas Doutor, eu preciso saber o porquê! O porquê!!
—Então filho, não é comigo que você vai descobrir.
Não desistiu, estava inquietíssimo com aquela dúvida. Foi ao psiquiatra.
—Doutor Genaro, não consigo mais ler um livro inteiro! Sempre paro na metade e começo a ler outro. Devo estar com algum distúrbio. Me dê um remédio! Preciso ler!
—Calma seu...
—...Orlando Caldas!
—Você deve ser apenas hiperativo, ter um déficit de atenção.
—Mas isso eu já sei doutor! E eu tomo remédio controlado. Não pode ser isso.
—Hum, então é um caso muito peculiar, devo admitir. Qual foi a última vez que leu um livro inteiro?
—Há um mês.
—Tem andado muito atarefado?
—Agora não mais.
—Tem ganhado ou comprado mais livros do que costumava?
—Sim, sim.
—Meu filho, tente apenas reorganizar seu tempo.
—Reorganizar meu tempo?
—É, e confira se você está tomando seus remédios corretamente.
—Hum, tá certo Dr. Genaro.
—Olhe rapaz, espere!
—Ahm?
—Tome, leve este livro com você, acho que pode ajudar.
— “Como organizar seu tempo”. Er, obrigado. Espero ler até o fim.
Meio frustrado, Orlando voltou pra casa e abriu o livro recém-adquirido. Ao chegar na página 2, sua mulher entra na sala:
— Querido, minhas pílulas anticoncepcionais estão sumindo. Você sabe se a empregada está tomando?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Prontodesabafei.

Não consigo mais prestar atenção às aulas de português. A aula de história hoje foi foda. Eu realmente gosto de Florbela Espanca, mas depende do meu humor. O presente do subjuntivo deriva do eu? Como é isso? Ah, que saco. Isso é muito chato. Deu saudade do meu cachorro. Eu to morrendo de vontade de ir pra casa e jogar Spore. Ontem depois da colação me senti mais leve. Parece até que acabaram mesmo as aulas. Queria eu. Ainda vai ter a recuperação. Preciso pagar Gracinha. MA** precisa me pagar. Não gosto de emprestar minhas coisas a ninguém. Não é frescura, é cuidado. Falei que nem mãe agora. Ah, pra que eu venho pra aula de português? Talvez eu aprenda algo ouvindo as palavras inconscientemente. “Maquininha na mão” – era assim que me chamavam quando eu era a primeira a acabar a prova quando eu era criança. Que coisa estranha, crianças fazendo prova. Eu sempre entreguei as provas rápido. Desde pequena. Acho que sou impaciente. Impaciente não, ansiosa. Eu escrevo ao contrário. Tipo mangá. Na verdade é meio diferente. Eu escrevo de frente pra trás e de trás pra frente, até os dois lados encontrarem o meio. É estranho. Comi um casquinho de banana caramelada e tinha uma menina me encarando. Uma escrota ela. Eu nunca fui assaltada. Graças a Deus. O estranho é que eu ando muito a pé e o povo não. E o povo é assaltado. Que todos os santos me protejam, embora eu não seja católica. Em dezembro terei três fins de semana seguidos de vestibular. Será ótimo. Mas também depois é liberdade. Direto pra Maragogi. Preciso pegar o assunto da recuperação. Acho que vou passar pelo conselho. Eu odeio química, morte às exatas. Fernando – eu gosto desse nome. Sábado é a formatura. Não estou tão ansiosa como deveria. Sei lá, to com a sensação de que não vai ser essas coisas todas. É preciso reservar uma mesa no parraxaxá. Tem café da manhã lá aos domingos? Acho freiras seres muito curiosos. Elas são desumanas. Hoje tinha uma ao meu lado. Tive o impulso não concretizado de perguntar-lhe se era virgem. Não é possível abdicar de instintos naturais. Essa freiras são todas profanas. Aliás, a vaca estava com uma câmera profissional ontem. Como pode? Que Uó. Porque existem verbos irregulares? Essa aula tem duas horas e ainda não passou nem a primeira. Às vezes estou meio Bukowski, às vezes fico meio Florbela Espanca, e muitas vezes drummoniana. Nos meus momentos de revolta incorporo Mário de Andrade. Nossa, porque estou falando isso? Porque o errado é errado? E o certo é certo? Quem estabeleceu isso? Porque não perguntaram minha opinião? É tudo tão unilateral.

Mc Donalds

Quando vejo pessoas comendo Mcdonalds todas me parecem extremamente gordas, obesas. Vem-me à cabeça um criadouro de gado, todos sendo alimentados até estourar. O estranho é que eu só tenho isso com Mcdonalds. Acho que a mídia criou um preconceito.
Geralmente quando vêm alguém muito magro devorando uma pilha de comida, as pessoas pensam logo “Oh, mas ele pode”, ou então, que vão mesmo só engordar. Minha sensação é contrária. Talvez por tamanha magreza dessa gente eu as compare a uma artéria, e por isso sempre acho que a qualquer momento elas vão morrer entupidas. É esquisito.
(04/11/2009)

Sólida solidão
Insolúvel solidez
Sob meus pés abre-se o chão
Sob minha cabeça insensatez.

Aliteração

Se você vir e não me vir, venha logo visitar-me, visto que tenho em vista envolventes vestígios de verdade. (04/11/2009)

domingo, 4 de outubro de 2009

Quase Macabéa

Os olhos vagos, uma certa expressão canina havia em sua face. Parecia um filhote desamparado que tinha conhecimento dos fatos, mas que preferia continuar alheio a tudo.
A pobre criatura mantinha uma ou duas amizades, geradas e mantidas apenas pelo convívio diário. Entretinha-as a falar besteiras, ouvir outras e discursar asneiras. Era vazia. Não tinha conteúdo. Levava em si um oco quase que pesado em seu corpo tão magro. As curvas quase lhe não apareciam, era reta e quadrada – características não só físicas.
Tinha dentes protuberantes e o cabelo sempre preso, maltratado, marcando-o, tirando a beleza de sua cor loira. Por falta de convívio social, talvez, tinha a voz oscilante, num tom desagradável aos ouvidos. Por falta de convívio social era motivo de chacota, virava as piadas mais engraçadas dos arredores. Por falta de convívio social, tornava-se irreconhecível à presença do seu cachorro. Depositava no pobre cão toda a sua carência afetiva, social e comunicativa – talvez por identificar-se com o próprio.
Era mesmo um ser curioso, sem brilho nos olhos, quase imperceptível aos demais – quase qualquer uma – , apenas mais um focinho abandonado, deprimente. Beirava à insanidade mental, colocava em questão a sua capacidade intelectual - por mera falta de criatividade, ou mesmo curiosidade.
Podia não ser um cão, mas decerto não era humana.

18/06/2009

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A disputinha

O embate travou-se no banheiro. Uma estava a admirar-se quando a outra chegou. Encararam-se. Uma foi ao sanitário; a outra continuou a mirar-se no espelho. Quando a primeira dirigiu-se à pia, a fim de lavar as mãos, a última tapou-lhe a passagem, fingindo distração. Tentou desviar da provocação, ziguezagueou e a danada da mulher não saia da frente. Resolveu usar outro lavatório. Encararam-se pelo reflexo do espelho. A que estava a se admirar jogava o cabelo para trás incessantemente como se quisesse dizer “olha, o meu é natural, morra de inveja, oxigenada”. A outra que lavava as mãos, desligou a torneira e ficou a brincar com o sabão, destacando bem as unhas, como se quisesse dizer “olhe as minhas unhas como são bem feitas e bem cuidadas, morra de inveja”. Ambas entenderam as provocações. Uma virou de costas para admirar-se “olha, eu tenho uma bela bunda”; a outra, desprovida, de fato, de nádegas, virou-se também de costas e ajeitou a calça, deixando a etiqueta de grife mais à mostra. Resolveram deixar o lugar na mesma hora, esbarraram na porta que era estreita demais para as duas e caíram de cara no balde d’água suja que a faxineira usara para limpar o banheiro. Sujou-se calça, cabelo, unha, espelho, chão, vaidade. Porque mulher tem mesmo dessas coisas.

17/08/2009

domingo, 27 de setembro de 2009

Ele!

Nosso “amigo” [termo duvidoso para caracterizar alguém que só quer te botar pra baixo] imaginário de questões provais.

Ele quer saber o gráfico da função. Ele quer saber a força peso. Ele tá pedindo a variação de temperatura. Você tem que saber o que ele quer! Ele não vai te dizer os valores. Ele vai te dar as constantes. ELE! ELE! ELE!
Quem é esse misterioso ele?!
Ó, Grande Ele, a quem tudo damos, a quem tudo respondemos, revele-se!
Ele se esconde por trás dos papeis, dentro dos livros, mas sempre nas provas é que ele faz questão de estar. Sempre oculto por trás das retas, sob os pontos, espremido entre letras e números, constantemente ordenando, pedindo, questionando.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Mais um passeio de ônibus, Casamarela – Nova Torre. 6:30 p.m. 15/09/2009

Subo os degraus do ônibus, indo contra a lei da gravidade. Entrego meu cartão VEM, que é identificado através de ondas eletromagnéticas pelo sistema, ao cobrador, este usa grossas lentes em seus óculos, serão divergentes se for astigmatismo, ou convergentes se for miopia (?). Pronto, estabeleci um contato secundário, característico das sociedades, não das comunidades. Passo pela catraca, que suponho mover-se através de uma mola com força elástica determinada por Kx. A inércia age sobre mim e abro minhas pernas para aumentar meu campo de estabilidade, evitando assim, uma queda em meio às pessoas ali presentes, o que me levaria ao estado do ridículo podendo ocasionar traumas irremediáveis no futuro, podendo ser amenizados por um psicólogo. As moléculas de H2O se condensam e se precipitam. Não é uma chuva convectiva, mas sim frontal, ocasionada pelo choque entre uma massa de ar quente com uma massa de ar fria. As luzes acendem-se, estão ligadas com resistores em paralelo. A moça à frente agasalha-se, assim suas moléculas se agitarão aumentando a sua temperatura corporal interna, se essa temperatura aumentar além do normal as proteínas podem desnaturar-se levando o indivíduo à morte. Passo em frente a uma praça projetada por Burle Marx, conceituado paisagista. Noto que o transporte público (que de público não tem nada, pois temos que pagar) possui um sistema de ar refrigerado,este responsável pela sucção do ar e de seu respectivo resfriamento, não está funcionando. Puxo a cordinha que imediatamente produz um sinal sonoro que são ondas bidimensionais. Vou descer.
O vestibular está próximo.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

versinhos

Mais do que tristeza;
dos homens, proeza
Mais do que temor;
dos homens, valor
Mais do que alegria;
dos homens, energia
Mais do que tudo;
Dos homens
Para os homens,
para sempre,
amor.

poema 1

Quando as mágoas afloram
Numa enchurrada de ressentimentos
Perco-me nas horas
Achando momentos.

E quando a angústia aperta
Inexplicavelmente prazeirosa
Aquele sentimento desperta
Como um desabrochar de rosa

Delicadamente sutil, inabalável
Traz consigo doidas alegrias
Cautelosamente voraz, indecifrável
Rouba-me escassas energias

Intriga-me com infindáveis indagações
Confunde as mais puras almas
Explora as mais quietas calmas
Enche de loucura os corações.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

O alface e a linha da vida

Ando descalça nas palmas da tua mão,
caminho na tua linha da vida,
torto traço que traça e que faz troça de um futuro

de uma vida incerta,

quase tão torto
como o torto traço
que traça
o futuro inscrito nessa palma dessa tua mão aveludada.

Fina como folha de alface,
fria como teus olhos cor-de-gelo.

Palma dos pés, sola das mãos,
encara-me de frente com teus gelos de olhos

com teus alfaces sonhadores

com teu futuro destemido
com essa linha torta

que descreve o rumo que há de te levar até mim.

01/06/2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Estudantes fazem protesto em frente à reitoria da universidade federal de Pernambuco contra o vestibular unificado.

Estava marcado para noves horas da manhã do dia oito de maio. Nós (Alice, André Ribeiro, Mariana Costa, Diego, Gabriel, Luísa, Marina e Ursula) pegamos um ônibus perto do colégio e descemos cerca de 2km (?) distante da reitoria. Caminhamos debaixo de um sol escaldante (mas não o suficiente para nos desestimular); passamos por dentro do Hospital das Clínicas; atravessamos a BR sobre a passarela e caminhamos em frente à Sudene até chegar ao local combinado.
Ao chegar, encontramos um carro policial para "operações especiais" exclusivo da Universidade Federal de Pernambuco e meia dúzia de seguranças para conter as duas dúzias de estudantes que ali se encontravam. O carro da Rede Globo chega e os reporteres ficam à espreita.
Caracterizados com narizes de palhaço e munidos de apitos, os jovens começam a clamar por "Unificação não é a solução". Aos poucos mais jovens chegam, a maioria de colégios da elite recifense (um dos fatores pelo qual mais lutam é contra a abolição da língua estrangeira no Enem 2009).
Gritos como "palhaçada" e "querem maquiar a educação nesse país" ecoam. Mais jovens chegam e são recebido com vivas. A multidão invoca o reitor "Amaro, que papelão: não querer discutir a educação" e "Amaro, quem é você? Um reitor de mentirinha deve ser". O movimento aos poucos toma forma e vai crescendo, enquanto é aguardada a resposta da reunião que acontece dentro da reitoria.
Não apenas vestibulandos fazem parte do protesto, mas também alunos do ensino médio em geral, professores e alunos integrantes da universidade.
Cartazes como "UFPE: universidade ou ponto turístico?" e "Não somos cobaias" são impostos diante da porta de entrada principal.
Críticas são feitas em relação à democracia da universidade através do coro estridente que entoa "Universidade sem democracia: não deixa estudante entrar na reitoria" e "ah, eu já sabia: na federal não tem democracia". As pessoas começam a avançar para a porta da reitoria e o policiais começam a ficar tensos com a aproximação. Agora, mais e mais gente chega. Vê-se um cartaz "Somos o futuro da nação, não à unificação".
Um carro de som contratado pelo cursinho Nicarágua se aproxima, e, usando um microfone, uma estudante lê um texto dirigido ao reitor para saber a opinião geral, além de organizar a multidão.
Enquanto isso, saio à procura de banheiro e me deparo com a hospitalidade de certos funcionários que nos deixam usufruir de um relativamente grande e limpo. Longe do tumulto, é possível observar a imensidão do lugar, refletindo o desolador sol recifense. Por ali encontramos carros à disposição da universidade, parados.

O sol já ia alto, o suor escorria sem piedade e tampouco os jovens desistiam da luta. Tomados pela sede, saímos dos estacionamento da reitoria e fomos em busca de água. Acabamos comprando um abacaxi de um vendedor de frutas que, frustrado, não vendeu mais "águas" porque não sabia da manifestação.
Espalha-se o boato que se projeta uma invasão à reitoria (uma ideia insana, cá entre nós); a desorganização (não tão grande) não contribui para tal ato - o número de pessoas agora é grande o suficiente para fazer barulho, mas não o suficiente para promover uma mudança.

Derrotados pelo atro-rei, impiedoso, tirano, os estudantes se redem ao cansaço e se disperçam em grupos embaixo das sombras cada vez mais escassas.
Os jornalistas entraram na reunião (que era prevista para acabar às 12h) e foram proibidos de filmar e fotografar. Após várias tentativas, apenas um estudante foi permitido de entrar no local.
Em reportagem ao vivo, o NETV mostra o protesto em rede estadual. Até 12:40h ainda não se tinha notícias do que acontecia lá dentro. Enquanto isso, uma fila de carros aguardava tanto do lado de dentro do estacionamento como do lado de fora, impossibilitados de trafegar pelos estudantes que barraram os portões na tentativa de chamar atenção.
Quando fui embora nada havia sido decidido. Entretanto, o reitor permaneceu inflexível - fontes posteriores informaram - e aceitou o modelo que já estava sendo visado, ou seja, a utilização do Enem como a primeira fase do vestibular, inviabilizando as propostas sugeridas pelo grupo estudantil.
Não conseguimos as mudanças, mas pelo menos fizemos barulho - e é isso que falta no país, um pouco mais de voz.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Dois Irmãos - Rui Barbosa

Cá estou eu, tendo a minha primeira experiência noturna num ônibus. São quase 10 da noite, volto do Teatro Santa Isabel. Passo pela cidade - as ruas estão vazias, desertas, sombrias, simplesmente noturnas.

Sobram os mendigos na sombra, na praça, nas calçadas das igrejas, no vazio do cais, no meio do caos.

Na Conde da Boa Vista as lojas estão fechadas,as pontes dormem embaladas pelo rio cá abaixo.

O cinema São Luiz jaz despercebido pelos feirantes, estrelando como personagem principal de um filme que já saiu de cartaz.

O ônibus voa em sua pressa de chegar a Sabe-Deus-Onde.

O Parque 13 de Maio fecha os portões para a noite, deixando os casais em fogo à beira-rio.

E aquele cara ali lembra-me um velho conhecido.

No já-não-mais silêncio que a noite já foi um dia, as ruas rugem, cantam óperas os freios.

Burle Marx me aparece sob o viaduto cercado de bicho, de semi-gente, de quase-coisa.

O motorista tenta cansado descontar nas curvas a insatisfação do dia (por não ter conseguido um emprego melhor, uma esposa melhor, uma roupa melhor, uma vida melhor. E para isso existem as curvas, para desacelerar o coração humano.

E em noites como estas bares vão à falêcia, em noites como estas tudo acontece e ninguém sabe, pois a noite em seu escuro acende estrelas e esconde estragos.



Obs.: texto escrito dentro do ônibus.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Breve instante

E eu entrei num ônibus semi-lotado, quase vazio, meio cheio. Repleto de gente, vazio de alma.
E a cobradora que era albina me pediu 5 centavos. E eu não tinha. E não conferi o troco, o troco de 3 moedas sem valor, que rodaram o mundo, que passaram de mão em mão, que caíram no chão, que foram pisadas.
E me sentei infeliz no banco da frente, um banco indiferente, do lado de uma mulher infeliz, que olhava sem ver o seu reflexo de mulher infeliz no vidro. E no vidro tinha um anúncio de carnaval, solitário, despercebido, em cores alegres (tentava em vão chamar atenção).
E então no tédio das curvas, e então no silêncio dos passageiros cansados, subiu uma mulher que andava agachada. Andava nervosa, apressada, andava de cara feia, como se todos ao redor a julgassem. Como se todos ao redor tivessem a capacidade de pensar algo sarcástico. Pobre coitada, as pessoas não pensam, pobre coitada, as pessoas só comentam e esquecem, pobre coitada, as pessoas em seus olhares perdidos nunca a encontrariam.
E então subiu junto sua cadeira de rodas, que rodou o mundo, que foi rodeada de olhares apreensivos. E a cadeira ocupou espaço no ônibus, e a cadeira ocupou espaço na mente dos ali presentes. E a cadeira fechada estava, fechada ficou, como a mente dos ali presentes.
E o ônibus enfim parou, e eu enfim desci. E mulher que lá estava lá ficou, e a cobradora que lá cobrava lá ficou, e a cadeirante que lá observava lá ficou, e o momento que eu contemplava em um instante passou.

16/02/2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Agora que estou no último ano, uma reflexão sobre a minha vida escolar. 01/02/2009

Tentei uma iniciação na vida escolar aos dois anos, mas não funcionou – eu era muito avançada para a minha idade. Fui educada até os quatro anos pela minha mãe, em casa, quando então conheci o lugar que mais tarde eu passaria a chamar de segunda casa – o colégio.

Naquele universo de seres idênticos a mim, de cores, letras e números, eu me destacava pela minha rápida evolução intelectual. Aprendi lá desde os números romanos até a dar laços nos meus cadarços, desde ler até brincar de pega-pega, desde o descobrimento do Brasil até o futebol com os garotos. Aprendi a viver em sociedade, a notar que a babá tinha menos condições sociais do que o menino briguento da minha classe, que havia gente chata e ruim e gente legal e boa. Descobri que a diretora botava medo em todos, menos nas mães e que ela, de um jeito muito bizarro, se vestia de papai Noel todos os anos como se nós não soubéssemos que era ela disfarçada.

Mudei de colégio de tão avançada que estava. Pulei um ano e descobri caras novas que aos poucos substituíram alguns velhos amigos que se perderam nas memoráveis brincadeiras de elefantinho colorido da antiga escola.

Vivi uma fase em que eu era o objeto de curiosidade, eu era a novata. E aprendi a lidar com isso, embora sentisse falta dos antigos. Então, com a participação não apenas de um, mas de dois colégios, eu aprendi a ser novata. E essa era mais uma de todas as fases das quais o ambiente escolar presenciou. Conheci Maria, Pedro, Carol, Ísis, Herbert e dezenas de iguais a mim. Aprendi lá desde polícia-pega-ladrão até a conviver com as diferenças, desde pular corda até aceitar que Bruna era cega e Lucas era surdo.

Aprendi que em todo canto existem pessoas chatas e ruins que acabam virando aquilo que é o contrário de amigo. Descobri que as pessoas tinham idéias diferentes e discutiam entre si e que todas as proparoxítonas recebiam acento.

Pude então usar calças jeans e usar canetas nas fichas (a moda eram aquelas com cheiro). Agora eu tinha um professor pra cada matéria e o direito de sair da escola sozinha. Descobri que nem todos os professores eram bons e alguns deles tiveram doenças graves. Mais tarde muitos nem lembrariam que eu havia tido aula com eles e outros passariam a me ligar todo o Natal desde os meus sete anos pra dizer que eu era especial.

E mais uma vez troquei de amigos, troquei de professores, troquei de amores, troquei de colégio.

Aprendi como se fazia uma prova e que muitas vezes devemos ser menos espontâneos porque aprendi também que os outros te julgam de forma inadequada. E lá tirei notas baixas, notas altas, discuti com professores e fiquei amiga deles. Descobri a importância de se usar um tênis Adidas e uma bolsa Kipling, descobri que panelinhas existiam, que a falsidade era constante entre as pessoas e me fechei para o alheio. Lá me tornei uma pessoa receosa, ressentida, cautelosa e observadora. Aprendi a ter bom-senso e a fazer cálculos. Descobri que os piores professores da face da terra podiam ser os meus e que nem sempre se é correspondido emocionalmente.

Estudei com o professor mais novo e o mais velho do colégio, Presenciei o bulling de perto e aprendi a ter respeito. Estudei os hormônios na aula de Ciências e passei a usar sutiã.

Todas as salas tinham ar-condicionado e o tempo do recreio havia diminuído bastante. Notei que haviam pessoas populares que todos babavam e não havia porquê e havia os excluídos que eram excluídos e não havia porquê.

Continuei nesse mesmo colégio, que embora repleto de defeitos, me cativou.

Chegou então o momento de maior expectativa da minha escolar – quando o meu número de matérias cresceu, meu intervalo encurtou e as aulas aumentaram.

As salas ficaram infestadas de alunos novos, que por estarem em grande quantidade não eram objeto de curiosidade como fui por duas vezes.

E dessa vez eu aprendi a estudar. Expandi radicalmente minha rede de contatos e a quantidade de notas vermelhas. Notei que exatas nada tem a ver comigo e que a química particularmente não me agradava. Quase repeti de ano por causa da maldita.

Os professores se tornaram mais próximos e também menos severos. Tive a pior e mais ridícula coordenadora de todos os tempos e aprendi a não detestá-la (como ela fazia comigo) e sim a ter pena.

A presença masculina se tornou cada vez mais constante na minha vida e o estudo também. Descobri do que eu gostava e do que eu não gostava e assim o que eu iria fazer na faculdade.

Meus amigos cresciam exponencialmente assim como a minha liberdade. Festas se tornaram mais freqüentes e já não eram mais as discotecas da quarta série.

Descobri que não só eu havia crescido, mas todos que estavam ao meu redor durante todos esses anos e me espantei em notar que não éramos mais crianças, me espantei ao notar que aqueles com quem eu brincava de queimado estavam fumando maconha e se embebedando loucamente, que metade das minhas amigas estavam namorando sério.

Notei que a tapioqueira podia ser muito mais simpática do que alguns alunos que usavam Nike, que o guarda era muito mais educado que a professora, que minha vida não seria nada sem a escola em aspectos tanto culturais como sociais.

De todos os colégios pelos quais passei nunca chorei, excluindo as quedas que eu levava brincando de pega-pega na primeira série. De todos os colégios pelos quais passei eu dava uma gargalhada todos os dias. De todos os colégios pelos quais passei o que eu menos aprendi foi o conteúdo dado na sala de aula.